quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Mão escondida projeta arquitetura medíocre

Ao examinar os projetos imobiliários que abundam em nossos jornais, noto que ultimamente a cor verde predomina: oferece-se à venda a paisagem vista da janela – um parque longínquo ou o jardim, por vezes bem elaborado, que constituirá o verde privativo de quem pode.



Edifício Prudência, arq. Rino Levi. Foto Nelson Kon

Recentemente até se oferece um simulacro de vida urbana, ao propor-se – imaginem! – uma rua, como aquelas de verdade – lembram? – em que as crianças se conheciam e brincavam; agora, porém, rua privativa, também para quem pode. Em alguns casos se oferece um centro esportivo ou um spa, de diminutas proporções, só para mencionar.
Simulacro de paisagem urbana, simulacro da sociedade reduzida a condôminos, simulacro de cidade. Parece que o mercado, mesmo usando sua mão escondida – diferente da mão invisível de Adam Smith (1723-1790), segundo o qual ela transformaria interesses individuais em bens sociais –, ainda não conseguiu apagar a lembrança de que a propriedade a ser vendida se situa numa cidade real, gerando um simulacro, exclusivo e excludente. Não nego a demanda por segurança que está na sua origem, mas questiono a falta de criatividade das soluções.
Quando plantas dos apartamentos são publicadas, espanta-me a similitude dos programas e dimensionamentos: parece que há um único protagonista a desenhar com sua "mão escondida" todas as plantas, com iguais dimensões dos quartos, denominações sempre que possível em inglês e a presença inevitável, esta brasileira, da churrasqueira.
O que não se publica é o nome do arquiteto autor desses projetos! A "mão escondida" o apagou, seja por não considerá-lo importante a ponto de figurar ao lado do decorador, do paisagista e dos realizadores do empreendimento; seja porque o próprio arquiteto não se sinta à vontade com o resultado. Se arquiteto exiaste, como entender, tiradas poucas exceções, o descaso com a estrutura e com a fachada, geralmente um aplique colado, muitas vezes imitando um paupérrimo estilo neoclássico?
Ao percorrer a cidade, vejo, com espanto, o resultado disso: um descalabro arquitetônico, na profusão grotesca e gigantesca de fachadas sem caráter, uma acúmulo de mediocridade preenchendo a paisagem urbana, num completo descaso com a rua em que cada prédio se localiza, ao atulhá-la com trânsito que não pode suportar e uma seqüência de grades, muros, muralhas com guarita, por vezes parecendo-se com presídios. Expressão voraz e predatória do privado não-urbano, recusa da cidade e da vida societária, exclusão ostensiva de tudo o que é público, de todos.



Edifício rua Avanhandava, arq. Oswaldo Bratke. Foto Abilio Guerra

Onde estão os arquitetos herdeiros de mestres da arquitetura residencial? Não mais se encontram, e perdoem a generalização, pois exceções certamente existem, projetos que emulem os esplêndidos edifícios Esther (Vital Brasil), Prudência (Rino Levi), Louveira (Artigas), General Jardim (O. Bratke), Mena Barreto (Aflalo e Gasperini), Guaimbé (Mendes da Rocha), Higienópolis (Heep), Sto. André (Pilon), Copan e Eiffel (Niemeyer) – todos exemplos de boa arquitetura, forte identidade, criatividade, bom ambiente para os seus moradores, enriquecendo a paisagem de suas ruas. E, na ocasião, bem vendidos, com lucro para seus empreendedores...
Enquanto os edifícios residenciais de hoje se apresentam uniformes e medíocres, de autoria anônima, a cidade apresenta bons projetos comerciais e institucionais, revelando a existência de empreendedores mais generosos e o trabalho sério de excelentes arquitetos; entre eles, Botti e Rubin, Aflalo e Gasperini, Carlos Bratke, Isay Weinfeld, Rui Ohtake, Paulo Mendes da Rocha e um bom grupo de jovens arquitetos cujas obras se destacaram na última Bienal de Arquitetura.
Há, portanto, salvação possível. Os empreendimentos poderão produzir lucro mesmo com projetos bons, livres da mão escondida que impõe programas, dimensões, estilos. Para fugir da mediocridade haveria alguns passos a dar.
Do lado dos empreendedores – embora a lógica do sistema os leve a não se preocuparem com a cidade, e sim apenas com o lote –, tomar consciência de que o campo de ação de seu negócio ficará mais restrito e mais caro à medida em que, por sua ação predadora, ruas e bairros forem sendo destruídos. Por outro lado, se o corretor de vendas ou quem contabiliza o investimento substituir os arquitetos nos momentos cruciais de elaboração de projetos, põe-se a perder a principal contribuição desses profissionais.



Edifício Louveira, arq. Vilanova Artigas. Foto Nelson Kon

Do lado dos arquitetos, estranho o silêncio obstinado das entidades de classe, dos críticos de arquitetura, da imprensa especializada. A Associação Brasileira de Escritórios de Arquitetura (Asbea) – de cuja criação participei – limita-se a se alinhar ao lado da associação de seus clientes, o Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis (Secovi), sem respeitar a natural diferença de enfoques e de interesses a defender. Pois nem sequer exigem que o nome do autor de projeto seja obrigatoriamente enunciado...
Compreende-se que o Sindicato dos Arquitetos permaneça silencioso nesta questão, pois a precariedade de contratação e o elevado número de profissionais concorrentes não estimula o debate, arriscando o emprego. Mas não compreendo o silêncio do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), veneranda instituição presente em momentos decisivos de nosso desenvolvimento, que tergiversou na discussão do Plano Diretor Estratégico e agora silencia no momento em que este é ameaçado de desfiguração, deixando a tarefa a outras organizações da sociedade civil. Seu papel tradicional em defesa da arquitetura e da cidade, papel cultural e social, deveria levá-lo a levantar os problemas que aponto neste artigo, liberando-me, aliás, do constrangimento de escrevê-lo...


Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de São Paulo, p. 2, no dia 2 de julho de 2008.
Jorge Wilheim é arquiteto e urbanista


Minha Cidade 226 – julho 2008

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